terça-feira, 5 de outubro de 2010

Um país para 190 milhões de brasileiros - parte 2

Marco Aurélio Garcia – Voltando a uma questão anterior: o governo FHC teve de tomar uma decisão no fim do seu primeiro mandato: ou tocava a situação adiante, ou fazia mais do mesmo. Nós também tivemos de encarar a mesma decisão. A iniciativa do PAC veio daí. É evidente que o primeiro mandato promoveu as condições para o segundo. Mas tiramos conseqüências práticas. O PAC entre outras coisas, é um resultado disso.

Dilma  - Você tem razão: a continuidade não automática, nem lógica. Houve uma decisão política. Percebemos que a estabilidade é um valor funcional, no sentido de nos garantir margem de manobra na política e para política. Para que tipo de política? Para aquela que promove o desenvolvimento do país e a melhoria das condições de vida da população brasileira, ou seja, a estabilidade para nós não é um valor em si, embora, durante muito tempo, ela tenha sido tomada desse modo, até em função do nosso longo histórico de inflação estratosférica e idas e vindas do crescimento econômico, o chamado vôo de galinha. É sintomático que a palavra desenvolvimento, que havia sido praticamente banida, tenha reaparecido conosco. A retomada da política industrial – outra expressão banida – talvez seja a mais significativa. Mostramos que e possível fazer política industrial com base no incentivo à inovação, no crédito e na política de desoneração fiscal.
         Muitos diziam que só havia um jeito de as pessoas melhorarem sua situação, era através do mercado. E que, se acreditássemos nisso, no final, todos seriamos salvos. Mas era impossível realizar política de habitação, porque não se podia subsidiar. Como construir casa para população com renda ate três salários mínimos, se o custo da casa não era compatível a renda? A equação simplesmente não fecha. O mercado jamais resolveria esse problema. Não se promove uma política de universalização  sem subsidiar: é impossível no Brasil. Há elementos que compõe o custo do Estado. A visão de saneamento feito por empresas privadas, na prática não avançou. Nós reservamos recursos para as empresas provadas investirem e nada aconteceu. É importante ter consciência disso, tornamos os subsídios novamente legítimos. Durante o primeiro mandato do presidente Lula, fui chamada ao Congresso para explicar por que estávamos subsidiando o programa Luz Para Todos, mas ate hoje não fui chamada para explicar por que subsidiamos hoje o Minha Casa Minha Vida. É sinal dos tempos, consenso mudou.

Marco Aurélio – Como a reinserção internacional do país incide sobre esse processo?

Dilma – A nova relação política do Brasil com o mundo é muito mais importante, Fizemos muito mais do que diversificar os parceiros comerciais, o que foi, no passado, muito mais importante nas relações internacionais. Ampliamos e diversificamos as relações com pensamento estratégico, com uma nova noção de geopolítica. Demos a devida importância aos países da América Lática. Lembro-me da primeira vez que o presidente viajou à África – isso era visto como absolutamente ultrapassado. Tivemos uma nova percepção da relação com os países emergentes, da nossa relação estratégica com a China, Com a índia, com a África do Sul, assim como, de forma diferente, com a Rússia. Essa nova visão nos proporcionou mais que uma vantagem durante a crise. O Brasil tornou-se, de fato, uma liderança regional e internacional.
         É importante lembrar que só conseguimos o direito de remontar o Estado nacional, a medida que o Brasil conquistou autonomia em relação a política internacional. Hoje se fala em neoliberalismo, mais seu receituário mais duro havia sido adotado no país muito antes desse debate – eram as políticas do FMI. Na época do governo Juscelino Kubitschek houve tensão. Agora, fomos capazes de pagar ao Fundo o que devíamos e assumir plenamente a autonomia de nossas políticas, sem a dependência de recursos que subordinavam nossos projetos de desenvolvimento.
         Não aceitamos mais esse tipo de ingerência. Imagine que uma variante de FMI esteve na pauta da reunião de Copenhague [15° conferência das partes da convenção de ONU sobre mudanças climáticas, em dezembro de 2009]. Chamava-se MRV [Measurement, Reporting and Verificantion]. A idéia era monitorar todas as políticas de combate ao aquecimento global, não apenas aquelas financiadas pelos paises ricos, mas também nossas políticas internas voluntárias, no caso de energia e agricultura que nos próprios financiamos com recursos nacionais. A maior parte das tensões em Copenhague girou em torno dessa idéia, defendida pelos EUA e pela Europa. Nós, obviamente, fomos contrários a ela. Chegaram ao ponto de dizer ao presidente Lula: “Não há problema, é como o FMI fazia. Vai no pais e monitora só isso”. O presidente, é claro, rejeitou completamente a idéia e a ingerência indevida.

Marco Aurélio – O debate mundial sobre mudança de clima tornou ainda mais evidente o novo papel do Brasil.

Dilma – Percebi muito bem, durante a reunião de Copenhague, como se desenvolveram as relações do Brasil no plano internacional. Nos, da delegação brasileira, envergamos a mudança do clima como uma questão ambiental decisiva para nosso futuro e o da humanidade, mas os países ricos estão presos a uma lógica imediatista. Essa lógica pressupõe que perderá competitividade o país que adotar medidas mais drásticas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Era o que estava por trás de todas as discussões em Copenhague. Os países da União Européia aceitavam aumentar, em relação  a 1999, de 20% para 30% sua própria meta de redução de emissão de gases de efeito estufa até 2020, desde os EUA também assumissem metas maiores de redução de suas emissões. Não que sejam incapazes de negociar, eles pensam nesses termos: se meu competidor não subir sua oferta, não poderei subir a minha.

Marco Aurélio – Todos esses países estão confrontados com o problema da mudança da matriz produtiva.

Dilma – É verdade. Eles estão confrontados com um problema sério. Para maioria dos países desenvolvidos, as medidas necessárias para reduzir as emissões de gases de efeito estufa dizem respeito, principalmente, a mudança de sua matriz energética poluente baseada no carvão e no óleo combustível. No caso do Brasil, com nossa matriz energética renovável baseada em hidrelétricas e biocombustíveis, o grande desafio é a redução e o combate ao desmatamento, seja no bioma Amazônico ou no Cerrado. Esse é o desafio. Ou seja: temos uma questão que pode ser resolvida imediatamente, porque dispomos de uma política efetiva. Eles, ao contrário, têm um sério problema de mudar a matriz energética. A nossa não é igual à deles, ela é renovável. Por isso a questão da energia não pesa tanto sobre nós. Eles não têm muitas alternativas ao carvão e ao petróleo, caso queiram avançar, precisam gastar muito dinheiro e daí decorre essa briga feroz. A China, por sua vez, tem uma situação diferente, com processos industriais ultrapassados, siderúrgicas altamente poluentes. Daí o seu investimento se concentrar na eficiência energética. Os investimentos na modernização das plantas chinesas podem permitir que o país diminua bastante suas emissões de gases e, ainda, utilizar sua eficiência energética como principal mecanismo de redução das emissões.

Emir Sader -  Nós conseguimos um modelo virtuoso, que procura articular crescimento econômico com distribuição de renda. Mas em que medida esse modelo é ecologicamente sustentável?

Dilma - Nosso modelo é altamente sustentável, estamos na vanguarda em relação à questão climática. Somos um dos países mais conseqüentes considerando nossas metas, matriz energética e nossos compromissos no combate ao desmatamento, em busca de uma agricultura sustentável. A preservação da Amazônia não é um desafio tecnológico, é um desafio à vontade política. Montamos um modelo virtuoso de preservação da floresta. Primeiro, mobilizamos a política federal e o exercito numa operação chamada Arco de Fogo, que impede a circulação ilegal da madeira em todos os estados Amazônicos, e em especial, nos 43 municípios que integram o grande arco do desmatamento. Graças a isso, conseguimos reduzir a área desmatada de doze mil quilômetros quadrados em 2008, para sete mil quilômetros quadrados em 2009.
         Simultaneamente, para dar efetividade a ação repressiva, mantivemos uma relação construtiva com esses 43 municípios, com os prefeitos e governadores desse conjunto. Implantamos políticas publicas para garantir alternativas de renda que não sejam o desmatamento e comercio ilegal de madeira, isso inclui legalizar a posse da terra nessas áreas, por meio do programa Terra Legal. Regularizar a posse permite que a pessoa tenha acesso ao crédito e a todas as políticas sociais do governo, desde que ela trabalhe seu lote de terra dentro da lei.
         Fazemos toda ação em conjunto com os Estados, suas secretárias e os ministérios. Atuamos conjuntamente e de forma direta, por exemplo, no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).  Nossa política é adquirir produtos para usar na alimentação das crianças, produção local de castanha de caju, açaí e outros. Com isso, organizamos essa produção e oferecemos sustentação ao micro e pequeno negócio. Tenho certeza de que conseguiremos reduzir o desmatamento da Amazônia em 80% até 2020, assim como vamos reduzi-lo em 40% no Cerrado.

Marco Aurélio – É importante destacar que nenhum país chegou à metas de redução de emissão tão ambiciosas como as do Brasil.

Dilma -  Desde as metas de redução do desmatamento até as de redução da emissão de gases de efeito estufa adotada antes ainda da Conferência de Copenhague, todas são absolutamente factíveis, ou seja, até 2020 haverá uma redução entre 36 e 39% da emissão de CO². Na agricultura, elas serão alcançadas com a utilização de técnicas inovadoras, como o cultivo direto sobre a palha o rodízio entre a agricultura e pecuária, a fixação biológica de nitrogênio e a recuperação das pastagens degradadas. Algumas dessas metas já começam a ser alcançadas em 2010 ou 2011.
         O Brasil conta, também, com outro fator decisivo: só não nos manteremos como pais de melhor matriz energética do mundo caso não quisermos. Enquanto países desenvolvidos usaram ate seus limites seus recursos hídricos – de 80% a 90% do seu potencial -, nós não chegamos a usar 30% dos nossos. Podemos fazer mais hidrelétricas e faze-las melhor, reduzindo o impacto ambiental. Em primeiro lugar, diminuímos a área alagada – não fazemos mais reservatórios. Depois, outra inovação proposta pelo setor elétrico é adotar o conceito de usina-plataforma; como se a usina fosse uma plataforma de petróleo em alto-mar: é possível chegar e sair de lá de helicóptero. Quando se levava uma hidrelétrica para algum lugar, havia desmatamento, construção de cidades, estradas, enfim, levava-se junto com a hidrelétrica o maior poluidor, o homem. Com a usina-plataforma não se altera, não se desequilibra o entorno. É claro que esse conceito de usina traz um efeito ambiental, mas será um efeito circunscrito, bastante reduzido em relação ao que havia.

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