segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A natureza do nojo de pobre

Márcio Venciguerra


A ciência mostra agora que existe uma nova forma de exclusão: a exclusão emocional. Os excluídos sociais não são vistos como gente, logo de cara. Isso é um fato. Triste, mas agora é um fato comprovado e recomprovado. É mais fácil sentir inveja dos ricos e orgulho pelos heróis do esporte do que se condoer pela situação de um miserável. A piedade é reservada aos idosos e aos deficientes físicos e não aos moradores de rua ou drogadictos. Estes provocam reações de nojo no cérebro.

E não estamos falando apenas de mauricinhos e patricinhas. Mesmo pessoas preocupadas com problemas sociais não têm empatia imediata quando olham imagens de pobreza extrema, segundo demonstraram recentemente duas pesquisadoras da Universidade Princeton (EUA), Lasana Harris e Susan Fiske. “Em pesquisas anteriores”, disse Susan em entrevista por e-mail, “ficou claro que militantes em favor dos pobres também os consideram estúpidos”.

Lasana e Susan registraram quais emoções surgem nos exames de ressonância magnética de 24 voluntários normais (sem doenças ou lesões). As pessoas assistiram a seqüências de fotos variadas e foram estimuladas a pensar no assunto. Por exemplo, quando era exibida a foto de um morador de rua, as pesquisadoras pediam para o sujeito se imaginar um assistente social, e planejar qual cardápio deveria ser oferecido a eles numa atividade beneficente. Enquanto isso, o aparelho escaneava os miolos, registrando a atividade mental. Isso é, quais circuitos de neurônios eram usados para pensar naquele exato momento.

As pesquisadoras procuravam assinaturas já conhecidas, que significam a entrada em funcionamento de grupos de neurônios relacionados com quatro emoções: orgulho, inveja, piedade e nojo. As reações estão catalogadas num método conhecido como o Modelo de Conteúdo de Estereótipos (Stereotype Content Model, ou SCM), construído a partir de experimentos em 13 nações, normalmente feitos com alunos universitários e voluntários de classe média.

Susan e Lasana têm se dedicado a descobrir os mecanismos do preconceito. Elas querem saber como um ser humano desumaniza um outro, e o quanto isso facilita praticar maldades, como o assassinato e a tortura. Este método, que permite analisar diretamente a emoção, ofereceu uma perspectiva completamente nova e assustadora. Segundo elas, o preconceito é visto tradicionalmente como simples animosidade social e política. Porém, o SCM tem mostrado que alguns são sentimentos piores. A visão de quase todos os grupos sociais costuma ativar o córtex pré-frontal medial, uma região embaixo da testa que só funciona quando a pessoa pensa sobre si mesma, ou sobre outro ser humano. Quase todos os tipos de pessoas, menos os extremamente pobres e os viciados. O pensamento nos miseráveis é processado na insula e amigdala, áreas do cérebro fortemente relacionadas com a sensação de nojo. A imagem de uma privada entupida provoca uma reação semelhante à de um mendigo.

Para as pesquisadoras, a falta de atividade no pré-frontal durante a exibição de fotos de pessoas excluídas mostra que "membros de certos grupos sociais parecem ser desumanizados". Embora as pessoas possam, conscientemente, encarar os excluídos como gente, o cérebro processa como grupos sub-humanos. E não importa se o indivíduo testado está consciente deste fato.

Ninguém interessado no progresso da humanidade tem o direito de ignorar essa evidência, pois é muito contra-intuitiva. A empatia é uma característica muito comum nos seres humanos e este tipo de exclusão emocional não deveria acontecer. O estudo será publicado na próxima revista Psychological Science, com o título Desumanizando os excluídos dos excluídos: neuro-imageamento de respostas à exclusão extrema (Dehumanizing the lowest of the low: neuro-imaging responses to extreme outgroups).

A pesquisa de Princeton alerta para a revisão de nosso modo de fazer política em favor dos excluídos. As pessoas interessadas em valores humanos também não podem se dar ao luxo de cair num conto do vigário antigo e acreditar na prevalência de um sentimento cristão em favor dos mais pobres. Ao contrário, os fomentadores do ódio já começam um passo à nossa frente.

Lutar pela inclusão emocional exige esforço e inteligência. Temos de mostrar as histórias de vida dos miseráveis e humanizar sua imagem se queremos mobilizar corações e mentes. Essa lição, aliás, já é bem conhecida dos fotógrafos interessados em problemas sociais. Lewis Hine se cansou de brigar por causa disso com os outros militantes da Liga Contra do Trabalho Infantil, no início do século XX, no Estados Unidos. Ele relutava em montar uma exposição mais chocante, e dizia que sua tarefa não era fotografar a miséria, mas sim, mostrar uma criança bonita submetida a maus tratos. Feridas expostas não levariam ninguém mais à manifestação, além daquelas pessoas que já militavam arduamente.

Já os jornalistas e cientistas sociais engajados acreditam demais na obrigação de denunciar. Apontar o dedo à ferida pode conquistar consciências, mas a emoção, que é o tipo de pensamento que nos leva à ação, continuará sendo de repulsa. E, é sempre bom lembrar, que os adversários da justiça social já usam esse conhecimento.

Pesquisas da resposta cerebral a produtos de consumo e seus anúncios estão sendo usados pela turma de marketing para viciar com mais eficiência há quase uma década. Sabe-se, por exemplo, que a visão de um carro esportivo dispara circuitos nos cérebros masculinos que costumam ser ativados apenas na observação de uma mulher bonita. Horrível, não?

Eu não me surpreenderia se isso acontecesse até comigo, apesar do meu ódio profundo pelas máquinas mais antidemocráticas já inventadas. Deixam o povo gordo, sujam o mundo, encarnam (enlatam) o máximo do egoísmo humano e dividem os cidadãos entre motoristas e pedestres. Faço questão de deixar o meu mísero tomovinho mil o mais sujo possível para demonstrar esse rancor. No entanto, por mais que eu rejeite a idéia, devo fazer essa injustiça com as mulheres e reagir à maravilhosa visão de um corpo feminino do mesmo modo que vejo a desprezível traseira de um porsche fedorento (ainda por cima um troço inventado por aquele engenheiro nazista). Enfim, a peneira não ajuda a proteger do sol. O conhecimento empírico deve ser usado para nortear nossas ações, mesmo se às vezes nossos miolos nos envergonham. Esse embaraço, porém, pode ser dirimido com a compreensão mais profunda de seu funcionamento.

Em primeiro lugar, não seria evolutivamente sensato se apaixonar por miseráveis, o que de pronto afasta os remediados dos mendigos. Isso não é de todo mal, porque até os mais solidários sabem do risco de abraçar um afogado e afundar junto. Além disso, cair na mendicância é um medo corriqueiro e talvez por isso ative a amigdala, uma região cerebral ligada às sensações mais viscerais possíveis.

Nossas mentes são feitas tanto para discriminar e eliminar inimigos, como para escolher e a agradar amigos. Isso teve uma função na luta entre classes, etnias, tribos e contra a criminalidade. Há sempre o risco de serem criados uns preconceitos desumanizadores, que invariavelmente nos levarão à violência. Susan e Lasana acreditam que esse fenômeno explica a tortura por agentes da lei, a ânsia pela pena de morte e aquele hábito internacional de grupos adolescentes burguesinhos atacarem mendigos. O índio pataxó em Brasília não foi um caso isolado. O Japão vive uma epidemia de ataques a idosos que foram parar nas ruas, vítimas da imprevidência privada.
Trata-se de um estilo clássico de crime, para o qual os pais e educadores deveriam dar atenção sem idealizações humanistas bobas. Especialmente porque o comportamento de pelotão assumido por esses adolescentes é semelhante ao observado por etólogos entre jovens chimpanzés e no ataque sem razão de cães domésticos. O frenesi destruidor destes momentos está bem enraizado em nossa mente para continuar sendo ignorado.
A natureza humana coloca este empecilho da exclusão emocional no caminho daqueles que sonham com um mundo melhor. Mas também forneceu a capacidade de empatia necessária para reunir a humanidade. A indiferença é mais comum no reino animal do que a solidariedade, mas a nossa espécie está entre as mais gentis. Só que não somos anjos. A carne é fraca e negamos nossas crenças sem perceber, várias vezes, antes e depois de o galo cantar três vezes.

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